Moeda, poupança, e confusões económicas – poupança e crescimento (III)

Mas afinal qual é o papel da poupança no crescimento económico? E será possível gerar crescimento económico sem poupança? A resposta a esta última questão é negativa (aqui temos alguém a argumentar o contrário). Sem poupança não há crescimento. Deste modo, qualquer política que tenha como consequência o estímulo do consumo deve ser evitada, se não for devidamente fundamentada. A razão é que a existência de poupança é condição necessária para a existência de crescimento económico.

Convém, no entanto, definir poupança antes de demonstrarmos esta última afirmação. A poupança é a componente complementar do consumo no rendimento. Por outras palavras, é a parte do rendimento que não é consumido imediatamente. Mas sendo os seres humanos criaturas insaciáveis, essa redução de redução do consumo por via da poupança tem de ser compensada com um aumento do consumo futuro mais ou menos longínquo, consoante a paciência de cada um.

Feita esta definição, pensemos nos factores de produção de uma economia. Tradicionalmente os economistas consideram o trabalho e o capital físico como sendo os factores fundamentais. Devemos ter em consideração que o factor trabalho pode ser considerado como outro tipo de capital: capital humano. Isto deriva de que parecem não existir limites importantes à acumulação deste. Para simplificar a nossa análise, consideremos então que o único factor de produção numa economia é uma versão agregada de capital: que inclua uma componente física e outra humana (se quisermos pensar noutros factores reprodutíveis como tecnologia, também a podemos incluir neste agregado).

A aplicação deste capital (maquinaria, homens, e tecnologia) no sistema produtivo é patente de gerar rendimento – o PIB de uma economia. A utilização deste capital, implica também a depreciação deste (maquinas que ficam danificadas com o tempo e pessoas que vão perdendo as suas capacidades e energia). Com o rendimento gerado, as famílias, como detentoras últimas do capital, poder-lo-ão aplicar em bens de consumo: por exemplo comida,  férias, obras de arte, etc.. Ou então, poderão poupar parte do seu rendimento para a aplicação em bens de capital (produção de máquinas, educação, e desenvolvimento de tecnologia). Se o nível de poupança for suficientemente elevado para compensar a depreciação do capital e o crescimento da população, então teremos crescimento económico. Isto é, teremos de ter um investimento suficientemente forte em capital – induzido pela poupança -, para que a posição final deste seja superior à do período anterior. O rendimento gerado por este investimento será cada vez maior e conseguirá sustentar indefinidamente o crescimento económico. Isto acontece já que máquinas cada vez mais sofisticadas requerem a utilização de profissionais cada vez mais sofisticados e vice-versa. A acumulação continuará ad eternum neste processo linear.

Com esta explicação torna-se fácil de compreender qual seria o resultado se, numa situação hipotética, um governo decretasse o fim da poupança. Todo o rendimento de uma economia seria canalizado para bens de consumo. Os primeiros anos de tal política poderiam ser bastante agradáveis: teríamos cozinhados gourmet, regados com vinho dos melhores anos; férias 3 meses por ano passadas em luxuosos SPAs, a idade da reforma passaria para os 45 anos; as crianças não teriam de estudar mais, estando apenas encarregadas de consumirem boa disposição e brincadeira; os cientistas e investigadores académicos transformariam os seus laboratórios em museus de contemplação. Mas enquanto este paraíso subsistisse, as casas começariam a ruir, os técnicos e operadores de máquinas não teriam aprendizes para os substituir (lembremos que a educação não existe numa sociedade sem poupança), os instrumentos mecânicos ficariam ferrugentos. Enfim, em menos de uma década regressaríamos à pujança consumidora de uma sociedade de Cro-Magnons.

Fica assim demonstrada a importância da poupança no crescimento económico. Convém, no entanto, realçar que a poupança não é o único factor determinante do crescimento: outros elementos podem também deter o crescimento económico (veja-se esta discussão). O que não poderemos ter de certeza é crescimento sem poupança (ou esforço, ou paciência). Esta é a noção fundamental a ter-se em mente quando alguém tenta defender a redução da poupança como uma virtude.

(para facilitar a leitura desta reflexão, este comentário será dividido em 3 partes: I, II, III)

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5 respostas a Moeda, poupança, e confusões económicas – poupança e crescimento (III)

  1. Pingback: A poupança no contexto keynesiano « O Insurgente

  2. Miguel Madeira diz:

    Imagine uma pessoa que tenha como passatempo favorito escrever extensões para o Firefox – nesse caso, não é necessário poupança para haver progresso tecnológico (embora admito que tenha sido necessária poupança prévia para produzir o computador que ele utiliza): as noites que ele passa até alta madrugada a programar não são (para ele, para outra pessoa poderiam ser) “poupança”, são “consumo”.

    Isto pode parecer um exemplo demasiado rebuscado e raro, mas não penso que seja assim tão irrelevante, já que a longo prazo a acumulação de capital mais importante é em tecnologia, e se calhar a ordem de preferências dos produtores de tecnologia muitas vezes não é muito diferente do exemplo que dei.

  3. Olá outra vez,

    Sim, no caso em que mencionou, julgo que terá razão – para certas pessoas, o deferimento do consumo presente, por exemplo para produzir tecnologia, será movida não pela capacidade de maior consumo futuro, mas principalmente pelo prazer retirado da descoberta ou desenvolvimento. Para essa pessoa, o ‘consumo’ é o seu sacrifício. No entanto, esse ‘consumo’ implicará um acréscimo do rendimento futuro, pelo que eu o contabilizaria – se isso fosse possível – como investimento. Para além do mais a sua ressalva é importante. Mesmo para que essas pessoas possam exercer esse tipo de ‘consumo’ é necessário um investimento prévio: para além dos computadores que referiu eu acrescentaria os anos gastos a aprender a programar (já que estou a utilizar uma noção muito lata de capital).

    Já sobre as preferências dos produtores de tecnologia, não sei se concordo com o que afirmou. Eu tendo a ver a produção tecnológica como motivada principalmente pelo lucro. Principalmente se considerarmos que não basta apenas apenas a sua produção para que esta tenha um impacto na sociedade. Será necessário também um canal eficaz de distribuição – a comercialização por exemplo.

  4. Um ponto um bocado tangencial – eu tenho muitas dúvidas acerca disto:

    “Isto acontece já que máquinas cada vez mais sofisticadas requerem a utilização de profissionais cada vez mais sofisticados”

    (a mim parece-me que máquinas mais sofisticadas a maior parte das vezes são mais fáceis de utilizar no dia-a-dia, embora possam ser mais díficeis de consertar).

    Mas, de qualquer maneira, penso que este ponto não é muito relevante para a discussão.

  5. A minha ideia quando escrevi essa frase era a de realçar que no cenário que expus, não existem factores (relevantes) de produção fixos que detenham o crescimento económico no longo prazo. Isto é, em princípio não haverá limites para a acumulação, nem de capital físico, nem de capital humano – pelo menos nas próximas centenas de anos. Assim, mais capital físico (mantendo capital humano fixo) implicará um salário maior, e mais capital humano (mantendo o capital físico fixo) implicará uma taxa de retorno de capital maior.

    Dito isto, acho que seria preferível que eu substituísse a palavra ‘requerem’ por ‘possibilitam’ na frase que indicou, pois clarificaria a minha intenção.

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